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quarta-feira, 27 de julho de 2016

Anjos esquecidos


Quando era criança, certo dia, estava tentando “consertar” uns brinquedos, e minha avó que me observava, comentou: "Quando fazes as coisas com vontade, vários anjinhos vêm te ajudar."
Fiquei prestando atenção para ver se via quando os anjinhos vinham me ajudar. Olhava nos lados, atrás, mas não conseguia ver os ajudantes. Achava que não estava trabalhando com afinco, por isso que eles não apareciam para me ajudar.
Depois de algum tempo sem conseguir flagrar nenhum anjinho, falei pra minha avó: "Vovó, não estou vendo nenhum anjinho!" E ela respondeu: "Quando eles estiverem ajudando eu te aviso."
Já estava distraído nas minhas arrumações quando ela disse: "Têm cinco anjinhos te ajudando agora." Procurei, mas não consegui ver nem um... E continuei com os brinquedos. Quando achei que estava trabalhando com vontade virei pra vovó e disse: "E agora Vó, quantos?" "Hum, daqui vejo oito."
Ficava contente por ter tantos anjinhos me ajudando, mesmo sem conseguir ver onde eles estavam e o que faziam. Imaginei que deviam ser tão rápidos que conseguiam se esconder enquanto eu virava para um lado ou para o outro a procura-los.

Essa brincadeira, eu gostava de fazer sempre que estava com saudade de alguma coisa que nem eu mesmo sabia o que era, mas que fazia uma falta... Então juntava os brinquedos, ia para perto da minha avó e esperava ela comentar quantos anjinhos estavam me ajudando. Nunca consegui ver nem sombra deles, apesar dela dizer que eles me acompanhavam aonde quer que eu fosse.
À noite, quando ela passava de cama em cama lavando nossos pés, eu ficava tentando ver se algum anjo a ajudava. Nada. Pra que ela não me mandasse levantar para lavar os pés, fingia que dormia, para aproveitar o carinho dela, ao passar a toalha úmida nos pés, com água morna, sabonete cheiroso e depois, seca-los com outra toalha cheirando a jasmim. Era no fim da tarde que ela colhia os alvos jasmins, enchia uma bacia e ia distribuindo aos punhados nos armários dos lençóis e nas gavetas de roupas, perfumando os fantasmas daqueles tempos que Chico fala na música.

Chega um dia, que tudo isso desaparece da memória, de tal forma, que não conseguimos mais lembrar o que ocorreu nos primeiros anos da infância. Até que, num repente, as lembranças vêm sem quê nem porquê, com todas as cores e sons.
Aconteceu quando, ao voltar da comemoração com a turma pela aprovação no vestibular, e abracei minha Vó, longamente...
Depois que os ânimos se acalmaram, na conversa em volta da mesa do jantar veio-me novamente aquela gostosa lembrança. Com algum receio - e vergonha do que os outros iam falar - esperei ficar sozinho com minha avó. Fiquei olhando um tempão enquanto ela fazia crochê, recostada na sua cadeira preferida de suave balanço, em silêncio. "Minha Vó, como é que a senhora conseguia ver os anjinho que vinham me ajudar, lembra?" Olhou-me com surpresa por um instante, mas logo percebeu meu constrangimento em - agora, já crescido - voltar a falar dessas coisas da infância.
Sorriu, largou o crochê no colo e falou-me com contida emoção: "Muitas vezes não percebemos aqueles que mais nos ajudam! Nem vemos o quanto ajudam, apesar de bem próximos de nós... Talvez, por isso mesmo. Por estarem sempre conosco.
Olhou-me com os olhos brilhando num sorriso e estendeu-me as duas mãos: "Veja meus dez ‘anjinhos’ ajudantes!"
Espalmou as mãos, movimentando os dedos como pianista, e completou:
"Agora, não vais mais esquecer os teus ‘anjinhos’!"
A partir daquele dia, comecei a lembrar de todos os anjos que me ajudaram, e perceber no dia-a-dia os que, próximos ou longe, ainda ajudam.
Hoje, é com saudades que relembro a doce presença do anjo que foi minha Vó. Aliás, como todas as avós.



Partindo da esquerda: Paluca, João, Carlos, Mamãe, Gracinha, Papai de pé,
Madô com Luiz no colo, Vovó Lulú, Nazá, Mathê, Antônio, Yolanda, eu e a boia.

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